sexta-feira, 19 de junho de 2020

NEM TODA INFÂNCIA É MARAVILHOSA


CAPITULO III
Os dois primeiros anos de vida do garoto não foram nada auspiciosos; teve varíola e foi cuidadosamente protegido pela mãe, mantendo-o deitado em folhas de bananeira para que as bexigas não arrebentassem e deixassem cicatrizes, mesmo assim umas poucas deixaram marcas que ainda podiam ser notadas vinte anos depois.
Um acidente horrível quase causou sua morte. Seu pai havia cavado um grande buraco em que depositou cal virgem e depois jogou água, o que provoca uma reação de calor muito forte. Aquilo era perigoso, mas por inexperiência não cercou o local. Uma prima, Maria, que estava brincando com o menino, correndo em volta daquele poço que parecia um vulcão em ação, empurrou-o por motivo que ninguém tem como descobrir e o infeliz mergulhou naquela fervura, quase morrendo. Felizmente foi socorrido a tempo e levado ao hospital, tendo ficado cego temporariamente. Vou ver se encontro uma foto dessas duas crianças brincando, não naquele dia, mas alguns meses depois.
Não me lembro de muita coisa mais que tivessem me contado. Um dia, Geraldo perguntou a sua mãe sobre uma lembrança confusa, vaga, contou que às vezes se lembrava de um caixão sendo transportado por quatro pessoas, que desciam uma escada como a da casa do seu Neco. Devia ser quando era muito pequeno, porque, segundo ele, quase nada conseguia recordar antes dos seus cinco anos.
A mãe ficava confuso e dizia que ocorreram duas mortes quando ele era pequeno, mas não julgava possível ele se lembrar de qualquer uma delas. Uma foi de sua irmã, Cleusa, que nasceu um ano depois dele e faleceu antes de completar seu primeiro ano de vida. A outra, ocorreu algum tempo depois, mas não muito, fora o falecimento da negra que a criara, que cuidou dela, e que ela considerava sua segunda mãe. Era para a negra Quitéria que ela contava seus segredos, seus sonhos, seus desejos. A negra ainda se lembrava da alegria que teve aos oito anos quando aconteceu a libertação dos escravos.
Entre as poucas lembranças que conseguiu preservar dos anos antes de ingressar na escola, está uma que foi seu primeiro choque com o tipo de educação e relacionamento com seu pai. Certa tarde, ficou se distraindo na casa dos avós e não percebeu quando o sol se pôs.  Teria que sair da casa deles, descer pela rua à esquerda até o primeiro beco, escuro, que subia até a rua da igreja e lá descer pela laderia que leva para sua casa. Falou do medo do escuro e os avós o aconselharam a dormir ali mesmo e ir para casa no dia seguinte bem cedo. Ele adorou a ideia, mas nem imaginou o que poderia acontecer.
No outro dia, foi bem cedo para casa e ninguém tinha acordado ainda, então ele sentou na varandinha que havia na porta de entrada. Acabou adormecendo e foi acordado pelo pai, que deu uma bronca e nada adiantou ele falar do medo do escuro. Mas o pior de tudo aconteceu à noite, quando o pai chegou do trabalho e ordenou que ele fosse comprar pão, fiado, na venda do seu João, que ficava depois do cemitério. Disse que era para ele aprender a vencer o medo.
Ele tentou de tudo para evitar isso, mas seu pai foi implacável. Ele foi orando o tempo todo e olhou somente para o lado contrário do cemitério, quando passou por ele. Na volta, lembrou-se de que um amiguinho tinha dito que à noite dava pra ver as almas que saem da sepultura pra ir para o céu. Não resistiu e olhou para o cemitério e garantiu no dia seguinte, para seu amigo, que viu uma fumacinha branca saindo de um túmulo e subindo para o alto. Não viu mais nada porque correu desesperado até chegar em casa.
Outra lembrança que ganhou uma recordação emocionando na década de 1960, foi uma conversa com sua vó, Dindinha Dinoca, olhando para uma linda lua cheia no fundo do quintal.
- Um dia, Dindinha, o homem ainda vai pisar na lua.
- Bate na boca, menino! Dizer isso é pecado, se Deus pôs ela tão longe é pra ninguém ir lá. Logo você vai fazer a primeira comunhão, vai ter de confessar isso ao padre.
Arraial do Cabo, 19 de junho de 2020.
DIA 22 continuarei.

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