CAPITULO III
Os dois primeiros anos de vida do
garoto não foram nada auspiciosos; teve varíola e foi cuidadosamente protegido
pela mãe, mantendo-o deitado em folhas de bananeira para que as bexigas não
arrebentassem e deixassem cicatrizes, mesmo assim umas poucas deixaram marcas
que ainda podiam ser notadas vinte anos depois.
Um acidente horrível quase causou
sua morte. Seu pai havia cavado um grande buraco em que depositou cal virgem e
depois jogou água, o que provoca uma reação de calor muito forte. Aquilo era
perigoso, mas por inexperiência não cercou o local. Uma prima, Maria, que
estava brincando com o menino, correndo em volta daquele poço que parecia um
vulcão em ação, empurrou-o por motivo que ninguém tem como descobrir e o
infeliz mergulhou naquela fervura, quase morrendo. Felizmente foi socorrido a
tempo e levado ao hospital, tendo ficado cego temporariamente. Vou ver se
encontro uma foto dessas duas crianças brincando, não naquele dia, mas alguns meses
depois.
Não me lembro de muita coisa mais
que tivessem me contado. Um dia, Geraldo perguntou a sua mãe sobre uma
lembrança confusa, vaga, contou que às vezes se lembrava de um caixão sendo
transportado por quatro pessoas, que desciam uma escada como a da casa do seu
Neco. Devia ser quando era muito pequeno, porque, segundo ele, quase nada
conseguia recordar antes dos seus cinco anos.
A mãe ficava confuso e dizia que
ocorreram duas mortes quando ele era pequeno, mas não julgava possível ele se
lembrar de qualquer uma delas. Uma foi de sua irmã, Cleusa, que nasceu um ano
depois dele e faleceu antes de completar seu primeiro ano de vida. A outra,
ocorreu algum tempo depois, mas não muito, fora o falecimento da negra que a
criara, que cuidou dela, e que ela considerava sua segunda mãe. Era para a
negra Quitéria que ela contava seus segredos, seus sonhos, seus desejos. A
negra ainda se lembrava da alegria que teve aos oito anos quando aconteceu a
libertação dos escravos.
Entre as poucas lembranças que
conseguiu preservar dos anos antes de ingressar na escola, está uma que foi seu
primeiro choque com o tipo de educação e relacionamento com seu pai. Certa
tarde, ficou se distraindo na casa dos avós e não percebeu quando o sol se pôs.
Teria que sair da casa deles, descer
pela rua à esquerda até o primeiro beco, escuro, que subia até a rua da igreja e
lá descer pela laderia que leva para sua casa. Falou do medo do escuro e os
avós o aconselharam a dormir ali mesmo e ir para casa no dia seguinte bem cedo.
Ele adorou a ideia, mas nem imaginou o que poderia acontecer.
No outro dia, foi bem cedo para
casa e ninguém tinha acordado ainda, então ele sentou na varandinha que havia
na porta de entrada. Acabou adormecendo e foi acordado pelo pai, que deu uma
bronca e nada adiantou ele falar do medo do escuro. Mas o pior de tudo
aconteceu à noite, quando o pai chegou do trabalho e ordenou que ele fosse
comprar pão, fiado, na venda do seu João, que ficava depois do cemitério. Disse
que era para ele aprender a vencer o medo.
Ele tentou de tudo para evitar
isso, mas seu pai foi implacável. Ele foi orando o tempo todo e olhou somente
para o lado contrário do cemitério, quando passou por ele. Na volta, lembrou-se
de que um amiguinho tinha dito que à noite dava pra ver as almas que saem da
sepultura pra ir para o céu. Não resistiu e olhou para o cemitério e garantiu
no dia seguinte, para seu amigo, que viu uma fumacinha branca saindo de um
túmulo e subindo para o alto. Não viu mais nada porque correu desesperado até
chegar em casa.
Outra lembrança que ganhou uma
recordação emocionando na década de 1960, foi uma conversa com sua vó, Dindinha
Dinoca, olhando para uma linda lua cheia no fundo do quintal.
- Um dia, Dindinha, o homem ainda
vai pisar na lua.
- Bate na boca, menino! Dizer
isso é pecado, se Deus pôs ela tão longe é pra ninguém ir lá. Logo você vai
fazer a primeira comunhão, vai ter de confessar isso ao padre.
Arraial do Cabo, 19 de
junho de 2020.
DIA 22 continuarei.
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